“Escrever – segundo Kafka acreditava – era sua única razão de viver e seu único meio de manter-se vivo. Escrevo, logo existo. Sendo filho não de Deus, mas sim de Herrmann Kafka e da Idade da Razão, Kafka torturou a si próprio e aos que lhe eram íntimos com a tentativa constante de tentar justificar e racionalizar aquilo que não admite explicações. O momento em que mais se acercou da fonte de suas necessidades e de sua arte talvez tenha sido em uma carta a Milena Jesenská: “Tento constantemente comunicar algo incomunicável, explicar algo inexplicável, falar de algo que sinto apenas em meus ossos e que só pode ser experimentado nestes ossos…” Kafka não era um homem que escrevia, mas alguém para quem escrever era a única forma de ser, o único meio de desafiar a morte em vida.
Ele permaneceu relativamente desconhecido durante sua vida, mas sua fama póstuma chegou quase a eclipsar a de todo o meio literário de Praga; os luminares de sua época estão mortos e, quer tenham sido queimados ou enterrados, já não têm o poder de assombrar-nos. Se Kafka o faz, isso se deve, em larga escala, à paixão obsessiva que levou para o escrever como um ofício sagrado. Isso não equivale a imputar-lhe a pretensão furtiva de alguma missão divina, humildemente não confessada. A compulsão irresistível de escrever parecia-lhe parte de um destino obscuro e profundamente pessoal, e não há dúvida de que, em boa parte do tempo, sentiu-se mais compelido do que escolhido. “O escrever me sustenta”, escreve Kafka a Max Brod em 1922, “Quando não escrevo, é bem pior, inteiramente insuportável, e termina, inevitavelmente, na loucura. Isso, é claro, apenas partindo do pressuposto de que eu seja um escritor mesmo quando não escrevo – o que, aliás, é um fato; e um escritor que não escreve é, na verdade, um monstro que corteja a insanidade.”
Por mais singulares que fossem os sentimentos de Kafka sobre a vocação que escolheu, eles refletem também o espírito de uma era em que a literatura havia tomado o lugar da fé, dos ritos e da tradição, convertendo-se, ela própria, numa espécie de religião. Esse fenômeno não se restringiu aos judeus: Flaubert fala na literatura como “la mystique de qui ne croit à rien” (a mística de quem não crê em nada).”
ERNST PAWEL
“O Pesadelo da Razão”
Pg. 95-96. Ed. Imago.
Publicado em: 07/02/13
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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